A cultura do cancelamento

O Ministério da Justiça e Segurança Pública determinou que o filme de Danilo Gentili “Como Se Tornar o Pior Aluno da Escola”, de 2017, seja retirado do catálogo de todas as plataformas que alocam a produção seguindo decisão de suspensão de exibição que tem “em vista a necessária proteção à criança e ao adolescente consumerista”. Tamires Ferreira – Olhar Digital

O Ministro da Justiça Anderson Torres compartilhou via Twitter um trecho do despacho, publicado nesta terça-feira (15) no Diário Oficial da União (DOU). Atualmente, as plataformas que disponibilizavam o filme eram Netflix, Globoplay, Telecine, YouTube, Apple e Amazon. 

Quando “Como Se Tornar o Pior Aluno da Escola” foi lançado, rapidamente se tornou alvo de críticas devido conteúdo sexual impróprio, bem como em uma cena que envolvia Fabio Porchat. O filme voltou no último fim de semana a ser assunto nas redes sociais dentro de um contexto político, ficando nos trends do Twitter e chamando atenção de políticos e do Ministério.

“Vamos lá: como funciona um filme de ficção? Alguém escreve um roteiro e pessoas são contratadas para atuarem nesse filme. Geralmente o filme tem o mocinho e o vilão. O vilão é um personagem mau. Que faz coisas horríveis. O vilão pode ser um nazista, um racista, um pedófilo, um agressor, pode matar e torturar pessoas”, afirmou o ator Porchat.

“O Marlon Brando interpretou o papel de um mafioso italiano que mandava assassinar pessoas. A Renata Sorah roubou uma criança da maternidade e empurrava pessoas da escada. A Regiane Alves maltratava idosos. Mas era tudo mentira, tá gente? Essas pessoas na vida real não são assim.”

“Quando o vilão faz coisas horríveis no filme, isso não é apologia ou incentivo àquilo que ele pratica, isso é o mundo perverso daquele personagem sendo revelado. Às vezes é duro de assistir, verdade. Quanto mais bárbaro o ato, mais repugnante. Agora, imagina se por conta disso não pudéssemos mais mostrar nas telas cenas fortes como tráfico de drogas e assassinatos? Não teríamos o excepcional Cidade de Deus? Ou tráfico de crianças em Central do Brasil? Ou a hipocrisia humana em O Auto da Compadecida. Mas ainda bem que é ficção, né? Tudo mentirinha”, finalizou.

Desde a estreia da sua 21ª edição, o BBB, reality show mais famoso do Brasil, teve muitos momentos em que os 20 participantes anônimos e famosos revelaram temer o famoso “cancelamento”. Nos últimos anos, cancelar uma pessoa se tornou uma prática comum nas redes sociais, geralmente motivada por alguma atitude ou fala reprovada por grande parte da população, como racismo, machismo, xenofobia, homofobia, entre outras intolerâncias. Mas, às vezes, o cancelamento pode acontecer por coisas banais, e o que inicialmente tinha objetivo corretivo, passa a ser depreciativo.

“Funciona como um linchamento moral, uma punição para alguém que fez algo considerado errado”, explica Sabine Heumann, professora de Psicologia da UNINASSAU – Centro Universitário Maurício de Nassau Maceió. Em 2019, o Dicionário Macquarie, que seleciona anualmente as palavras e expressões que mais moldaram o comportamento humano, elegeu “cultura de cancelamento” como o termo do ano.

“A internet acaba facilitando comportamentos que, muitas vezes, não seriam feitos nas relações face a face. É mais difícil sentir empatia por uma pessoa que não está próxima, que não conhecemos, que é apenas um nome na internet”, afirma a psicóloga. Além disso, existem os grupos que atuam em efeito manada. Por fazer parte de um grupo, as pessoas acabam agindo, muitas vezes, sem questionar ou refletir, apenas replicando. “Isso deixa os canceladores mais à vontade, pois outras pessoas pensam da mesma forma, fortalecendo sua visão, e não colocando-a em questão”, completa.

Outra problemática do cancelamento é a redução do cancelado a um comportamento, ideia ou atitude. “Nós somos serem complexos, multifacetados e estamos em constante transformação. Somos muitas coisas ao mesmo tempo. Quando alguém é cancelado por causa de um comportamento, parece que toda a sua existência se resume a ação que foi desaprovada, e isso não é verdade”, defende Sabine.

“Quando nossas relações nos dizem que não somos bons o bastante, que somos errados, isso pode gerar um impacto grande na autoestima, o que pode ser prejudicial para a saúde mental de maneira global. Também é possível gerar comportamentos que perpetuam esse cancelamento, devido a agressividade, ao descontentamento, a uma postura de defesa/ataque que ser cancelado pode gerar. Ou seja, muitas vezes os canceladores podem já terem sido cancelados ou então têm medo de ser. Quando eu cancelo o outro, coloco o foco nele e a chance de eu ser cancelado é menor, o que acaba gerando um comportamento que pode ser cíclico”, responde Sabine Heumann, que é docente da UNINASSAU Maceió.

Sabine cita Freud: “quando Pedro me fala sobre Paulo, sei mais de Pedro do que de Paulo”. De acordo com a psicóloga, cancelar alguém, pode ser uma forma de provar ser melhor, mesmo que de forma não consciente. “Quando colocamos uma opinião sobre algo ou alguém, estamos colocando a nossa visão sobre aquilo, ou seja, a nossa subjetividade aparece. Quando algo nos chama atenção em alguém, nos intriga, nos revolta, nos causa tristeza ou outros sentimentos, isso está mostrando alguns aspectos meus”, fala.

“Se quisermos que, de fato, alguém modifique um comportamento, um caminho com mais empatia, diálogo, buscando compreender de onde vem aquela ação, seja um o mais efetivo. Temos a capacidade de mudar, aprender e transformar. Quando eu cancelo alguém, tiro dessa pessoa a possibilidade de transformação”, finaliza Sabine Heumann.

“Pessoas que são excluídas perdem oportunidades e são anuladas, tendo dificuldade de, até mesmo, reparar a ação que pode não ter sido legal”, explica Sabine. A psicóloga diz que sempre se pergunta qual a razão do cancelamento e o que as pessoas querem ao repreender um erro. “Se quisermos que aquele comportamento seja reparado, precisamos olhar para a pessoa com empatia, entender que todo mundo erra em algum momento e que é possível se transformar”, defende a profissional.

Acusada de transfobia, JK Rowling assinou carta contra a cultura do cancelamento

O movimento hoje conhecido como “cultura do cancelamento” começou, há alguns anos, como uma forma de chamar a atenção para causas como justiça social e preservação ambiental. Seria uma maneira de amplificar a voz de grupos oprimidos e forçar ações políticas de marcas ou figuras públicas. Mariana Sanches – BBC News Brasil em Washington

O “cancelamento” é um ataque à reputação que ameaça o emprego e os meios de subsistência atuais e futuros do cancelado. Extremamente frequente nos Estados Unidos, ela hoje abate personalidade, mas também anônimos.

“Você pode ser cancelado por algo que você disse em meio a uma multidão de completos estranhos se um deles tiver feito um vídeo, ou por uma piada que soou mal nas mídias sociais ou por algo que você disse ou fez há muito tempo atrás e sobre o qual há algum registro na internet. E você não precisa ser proeminente, famoso ou político para ser publicamente envergonhado e permanentemente marcado: tudo o que você precisa fazer é ter um dia particularmente ruim e as consequências podem durar enquanto o Google existir”, definiu o colunista do The New York Times Ross Douthat em uma coluna sobre cancelamento há alguns dias.

Diante do que qualificaram como “atmosfera sufocante”, um grupo de 150 jornalistas, intelectuais, cientistas e artistas, considerados progressistas, resolveu publicar, na Harper’s Magazine, há duas semanas, um texto intitulado “Uma carta sobre Justiça e Debate Aberto”. Assinada por nomes de peso, como o linguista Noam Chomsky, os escritores J.K. Rowling e Andrew Solomon, a ativista feminista Gloria Steinem, a economista trans Deirdre McCloskey, e o cientista político Yascha Mounk, a carta afirma que “a livre troca de informações e ideias, força vital de uma sociedade liberal, tem diariamente se tornado mais restrita. Enquanto esperávamos ver a censura partir da direita radical, ela está se espalhando também em nossa cultura: uma intolerância a visões opostas, um apelo à vergonha pública e ao ostracismo e a tendência de dissolver questões políticas complexas com uma certeza moral ofuscante”.

A disputa política em torno da “cultura do cancelamento” deve ser longa e aguerrida. E a crítica a alguns de seus efeitos tem criado uma rara sintonia entre partes da esquerda e da direita.

O presidente americano Donald Trump já criticou o fenômeno como a “definição do totalitarianismo”. Ao mesmo tempo, é criticado por usar justamente alguns desses métodos para perseguir desafetos por meio principalmente de sua conta no Twitter.

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